domingo, 20 de maio de 2012

Do livro à tela do cinema: a crítica de Monteiro Lobato ecoando nos filmes de Amácio Mazzaropi

Antes de mais nada, peço desculpas aos leitores mais assíduos pela demora em publicar minha coluna mensal na revista. Primeiramente, eu fiquei indeciso quanto ao assunto que deveria abordar no mês de abril, já que a indicação de leitura (que pode ser vista aqui) era instigante sob vários aspectos e permitia estabelecer conexões com mais de uma manifestação artística e cultural. Depois, pensei que existiam (e existem) vários outros temas que também merecem destaque no nosso espaço. Da indecisão à não redação do texto foi um pulo. Por esse motivo, inicio meu texto com este parágrafo tão longo quanto (talvez) afetado. 

Pois bem, entre os assuntos que podem aparecer na revista, me pareceu justo (além de necessário) enfocar a obra do paulista Monteiro Lobato (1882-1948) (foto), que hoje percebo ser um autor mais citado do que propriamente lido, sobretudo pelos jovens. Um exemplo: em 1982, quando se comemorava o centenário de nascimento do escritor paulista, a Rede Globo dedicou um Globo Repórter inteiro à sua vida e obra. Veja aqui: http://www.youtube.com/watch?v=vyATf0eOskY. Trinta anos depois, neste 2012 do "fim do mundo", não houve nenhum tipo de manifestação na grande mídia. Pelo menos não me dei conta. Por isso, falarei um pouco sobre um dos personagens de Lobato: o comentadíssimo Jeca Tatu

Esboçado em texto de 1917, o Jeca Tatu era, na opinião de Lobato, "um funesto parasita da terra (...), espécie de homem baldio, semi-nômade, inadaptável à civilização..." e que explicaria o atraso da nossa terra brasilis, sendo um entrave à modernização do país. Pouco depois o personagem iria celebrizar-se ao constar de um discurso proferido por Rui Barbosa no Teatro Lírico. A foto ao lado mostra parte dessa repercussão. O jurista, que jamais citara qualquer autor vivo até aquele momento, refere-se ao personagem lobatiano, definindo-o como "símbolo de preguiça e fatalismo, de sonolência e imprevisão, de esterilidade e tristeza, de subserviência e embotamento". Posteriormente, ao inteirar-se dos problemas de saúde causados pela falta de saneamento, Lobato faria uma retratação, reconhecendo que o Jeca não era, mas estava daquele jeito:
"Eu ignorava que eras assim, meu caro Jeca, por motivo de doenças tremendas. Está provado que tens no sangue e nas tripas todo um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte." (Lobato, 1918, prefácio à quarta edição de Urupês) [1]
Pausa.

Nesta mesma coluna, quero falar também de outro personagem nacional importante e esquecido: Amácio Mazzaropi (1912-1981). Embora tenha sido dos mais populares cineastas deste Brasil varonil, sempre recebido com entusiasmo pelo público que lotava as salas de exibição, ele enfrentou a oposição de boa parte da crítica especializada da época, que taxava seus filmes de rudimentares, ingênuos e previsíveis em sua fórmula pronta de sucesso, além de considerá-los uma apologia ao retrocesso numa sociedade que tentava modernizar-se a qualquer custo. Para conhecer a recepção da filmografia de Mazzaropi, leia os artigos reproduzidos na seção sucesso e crítica, na página virtual http://www.museumazzaropi.com.br/sucesso.htm. Atualmente essa visão tem sido repensada e já existem estudos acadêmicos que defendem um novo olhar à produção de Mazzaropi, entendida como sintomática dos problemas que permearam a construção da imagem de um Brasil moderno. A respeito desta reconsideração, recomendo este artigo aqui: http://www.editoraufjf.com.br/revista/index.php/ipotesi/article/viewFile/418/392 

Quanto à aproximação entre os nossos dois artistas, destaco dentre os textos do Museu Mazzaropi um de 1984, escrito por Wilson Tosta. O autor afirma que o cineasta "sempre negou-se a relacionar o seu Jeca com o Jeca Tatu de Monteiro Lobato". Embora essa negativa seja possível, tentarei aqui relacionar o personagem literário de um e o personagem fílmico do outro. O ponto de partida de nossa reflexão será o filme Jeca Tatú (1959, 89 min, p&b, direção de Milton Amaral), tido por muitos como um dos maiores sucessos da carreira do cineasta de Taubaté.

Como pode ser lido nos créditos iniciais do filme, a intenção de Mazzaropi é prestar uma "sincera homenagem ao saudoso Monteiro Lobato". Por aquele tempo a morte de Lobato ainda era um fato relativamente recente - se haviam passado apenas onze anos - e parece seguro afirmar que a caricatura representada pelo Jeca Tatú continuava a servir para fazer a crítica da população brasileira, ainda bastante concentrada no campo.


Desde as primeiras cenas, fica explícita a ligação da película com a obra lobatiana: Jeca é o habitante do interior do Brasil que não tem força para levantar-se da cama, dada a sua "preguiça". Ele vive com a esposa e os filhos em uma casa de pau-a-pique (foto ao lado) e, por conta de sua indolência, não trabalha a pouca terra que possui. Ao deixar a terra improdutiva e encher-se de dívidas no armazém para manter o sustento da família, o personagem torna-se presa fácil da ambição de seu vizinho, que lhe usurpa as terras mediante "hipotecagem de dívida".

Nota-se que o enfoque recai sobre a crítica de Lobato ao modo de vida do camponês brasileiro, entendido como atrasado, antes de ser visto como doente. Como já comentei acima, a primeira visão de Lobato a respeito do tema encarava o atraso do país como uma consequência da pouca disposição do camponês para o trabalho e do seu desconhecimento dos novos métodos e instrumentos para o trabalho da terra. No filme a questão "tecnológica" só aparece muito sutilmente numa emenda que o Jeca faz ao discurso de um político.

O político entra em cena quando o matuto já perdeu tudo. Em troca de votos (se você acha que este assunto é novo, está equivocado), ele promete conseguir novas terras para o Jeca e em um discurso lhe promete enxada para as lides do campo, quando então lhe é sugerido que prometa tratores. No mais, a crítica aos costumes e à politiquice tornam-se o foco principal do filme, apontando problemas da sociedade brasileira como o homenageado faria se estivesse vivo àquela época.

Mesmo resvalando para a panfletagem em alguns momentos, o filme mantém picos de comicidade impagável e ainda encontra tempo para tocar na questão das doenças, como na cena abaixo em que o Jeca diz que está tremendo por causa de um princípio de maleita (malária).



Além da leitura de Monteiro Lobato, recomendo a todos que assistam o filme pois foi produzido em um momento de nossa história em que não era a violência urbana no Rio que ocupava as salas de cinema. 


Notas:


Para saber mais sobre a vida e as outras obras de Mazzaropi: http://www.museumazzaropi.com.br e http://www.taubate-sp.com.br/mazzaropi.htm. Para um texto que trate mais especificamente do filme Jeca Tatú, acesse: http://www.museumazzaropi.com.br/filmes/10jtatu.htm

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